O STJ (Superior Tribunal de Justiça) reconheceu que a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgêneros e transexuais.
Decisão inédita na corte superior, os ministros da 6ª Turma do tribunal entenderam, por unanimidade, que os mecanismos de proteção previstos na legislação devem ser igualmente assegurados a elas, independentemente de cirurgia de mudança de sexo.
O julgamento ocorreu na terça-feira (5). O colegiado analisou um recurso especial do Ministério Público de São Paulo para que fossem fixadas medidas protetivas a uma mulher transexual, vítima de agressões desferidas pelo próprio pai dentro de casa.
De acordo com os autos, o pai, um usuário de drogas, chegou na residência alterado, agarrou a filha pelos punhos e a jogou contra a parede, antes de tentar agredi-la com um pedaço de madeira. Ela foi perseguida pela rua até encontrar uma viatura da Polícia Militar.
A primeira instância e o Tribunal de Justiça de São Paulo negaram as medidas protetivas, entendendo que a proteção da Maria da Penha seria limitada à condição de mulher biológica.
Ao acionar o STJ, o Ministério Público paulista argumentou que não se trata de fazer analogia, mas de aplicar simplesmente o texto da legislação. No seu artigo 5º, ao definir seu campo de incidência, a norma se refere à violência “baseada no gênero”, e não no sexo biológico.
“Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata”, afirmou o relator do caso, ministro Rogerio Schietti.
“As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias.”
O entendimento do STJ seguiu parecer do Ministério Público Federal, para o qual a proteção ultrapassa o aspecto biológico e refere-se, essencialmente, à identidade de gênero.
A subprocuradora-geral da República Raquel Dodge explicou que, enquanto o conceito de sexo se restringe a aspectos biológicos, o termo gênero, utilizado na lei, diz respeito a “características e construções sociais, relacionadas aos papeis atribuídos a cada grupo”.
Ela sustentou ainda que questões como essa devem ser interpretadas levando-se em consideração o fator cultural. A compreensão baseia-se na jurisprudência do próprio STF, que já determinou que o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero.
“O transexual feminino ou a mulher transexual, independentemente de ter sido submetido a cirurgia de transgenitalização, deve estar sob a proteção da Lei Maria da Penha se a ação ou omissão que ela sofreu decorre dessa sua condição social”, afirmou a representante da Procuradoria.
Dodge lembrou que as violações de direitos humanos decorrentes de orientação sexual ou identidade de gênero são agravadas por outras formas de violência, ódio, discriminação e exclusão.
O MPF fez menção a dados divulgados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil e do Instituto Brasileiro Trans de Educação. Segundo as duas entidades, 175 pessoas trans foram mortas no Brasil somente em 2020, sendo todas travestis e mulheres transexuais. O número corresponde ao assassinato de uma pessoa trans a cada 48 horas.
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*Com informações Folha de São Paulo